Título: Tiro Fatal Autora: Claudia Modell Sinopse: Em um confronto com a polícia Mulder sai ferido. E-mail: claudia@subsolo.org Categoria: Drama/Morte de um dos personagens Homepage: http://subsolo.org Disclaimer: Os personagens dessa história foram criados por Chris Carter, 1013 e Fox Company. Tiro Fatal Mulder sentia uma leveza imensa, um estado de torpor indescritível. Era como se não tivesse braços ou pernas. Era como se não tivesse mais um corpo. Mas, ao mesmo tempo, ele sabia que não havia morrido. Podia ouvir o farfalhar de folhas ao vento, ouvia risos de crianças, sentia odores antes esquecidos, como cheiro de massa de modelar. Abriu os olhos e tudo o que viu foi a luz, forte, branca, invasiva. Fechou novamente os olhos e passou somente a escutar os ruídos que o deixavam naquele estranho estado de torpor. "Chame uma ambulância!" Era estranho, aquele pedido não fazia parte do cenário em que ele se encontrava. Teria alguém se ferido? E onde ele estava afinal? Talvez fosse o grito que ouvira, ou talvez suas próprias perguntas, o fato era que ele foi arrancado de seu descanso e passou a sentir seu corpo, deixou de ouvir os risos de crianças. Agora os ruídos que ouvia não tinham nada de inocentes. Não eram mais tão calmos como folhas esvoaçando. Eram sirenes. Seu corpo agora dava sinais de que estava mais do que desconfortável. A dor começava a se manifestar aos poucos, de início tímida, quase como uma cãibra. Mas aumentava a cada instante, fazendo com que Mulder ficasse irritado. Ficar zangado não é a melhor maneira de lidar com a dor. Isso não resolve o problema principal, mas Mulder não conseguia deixar de se irritar com seu próprio corpo que ficava mandando mensagens para o cérebro de que algo estava errado. Ele sabia que algo estava errado, não precisava dessas mensagens redundantes. Quando deu por si, estava gemendo, pela dor e pela raiva. Talvez mais por esta última razão. Abriu os olhos, novamente, e viu a ambulância chegando. A sirene ainda gritava, anunciando a chegada da cavalaria. Assim que os paramédicos se aproximaram, passaram a tirar sua roupa, provavelmente querendo verificar a extensão dos ferimentos. Mas Mulder não estava nada contente com mais essa invasão. Ele sentia frio, muito frio. Seu sangue quente que escorria no chão lhe dava uma sensação de alívio, de calor. Estranho sentir-se aliviado quando seu sangue se esvai tão rapidamente, e tudo isso somente para sentir um pouco de calor. Mas ele não conseguia pensar de outra forma, somente conseguia saborear esse restinho de calor que ainda sentia, até que isso lhe foi negado. Os paramédicos colocaram algo sobre seus ferimentos, talvez suas próprias mãos. Ele já não sangrava como antes. E o frio aumentava cada vez mais. Talvez adivinhando o que ele sentia, o cobriram. Antes que Mulder pudesse agradecer, eles o levaram para dentro da ambulância. Mulder se sentiu subitamente enjoado. O enjôo era insuportável, a cabeça rodava, o coração parecia querer sair do peito. Havia algo errado, muito errado. Ele estava morrendo. O tiro tinha sido fatal, só agora ele percebia. Podia começar vender os bilhetes para a exibição do filme "A Vida de Fox Mulder em Dez Segundos". Bem, seria somente um bilhete, e esse filme ele já tinha visto. Portanto, ele decidiu, como se isso fosse possível, que aguardaria mais uns trinta anos para assistir essa premiere. Mulder sorriu ao pensar nisso, mas deixou de sorrir ao pensar que talvez estivesse rindo de sua própria morte. Aquele era um momento solene, ele não podia simplesmente transformar isso em mais uma de suas ironias. Pretendia recepcionar a morte de forma especial, com o respeito necessário, afinal essa sua rival havia tentado tantas vezes alcançá- lo e jamais havia conseguido, até aquele momento. Ela era uma rival e tanto, ele pensou e novamente sorriu. A ambulância parou, e o enjôo que Mulder sentia também. Pensando bem, até mesmo a dor havia diminuído. Talvez houvessem lhe dado algo, analgésicos quem sabe. O fato era que se sentia bastante confortável, dadas as circunstâncias, ao menos. Foi nesse momento que ele percebeu a ausência de sons a sua volta. A ausência de luz, de odores. Era uma enorme ausência e ele estava no meio dela. Talvez tivesse morrido, daí não sentir mais dor, nem frio, agora que pensava nisso. Ele não estava sentindo mais nada. Esse seria um daqueles instantes que seu coração daria um salto, seu estômago seria invadido por um frio intenso, sua garganta se fecharia e sua boca ficaria seca. Seriam seus sintomas para um pânico bem fundamentado. Mas ele não sentiu isso. Continuou a não sentir nada. Ok, onde estava o túnel com a luz no fundo? Ou onde estavam os anjos com harpas, ou seus parentes já mortos? Nada de túnel, nada de nada. Ele tentou abrir os olhos, mas não sabia se havia conseguido ou não. Tudo continuava escuro, e silencioso. Ele havia morrido, com certeza. Não havia outra explicação plausível. Se Scully estivesse ao lado dele ela até concordaria. Era uma verdade, sem outra explicação, mas ele não gostava nem um pouco dessa verdade. Era chato estar morto. Não era como naquele filme com a Demi Moore. Ele não poderia sair passeando pela cidade sem ser visto. Não poderia assombrar as pessoas. O que ele faria? O pior não era nem isso. O que realmente o indignava era ver como ele havia se enganado quanto a morte. Ele havia achado que morrendo passaria a ser o detentor de todas as verdades. Como se morrendo passasse a ter a chave para todas as portas, saber não somente o que havia acontecido com sua irmã, mas também a importância dos logaritmos. Mas, logicamente, nem a isso ele teria direito. Ele se irritou, tentou se mover. Sabia que não tinha mais um corpo, mas queria se mover, só isso. Que alguém viesse dos céus lhe dizer que isso era proibido. Que alguém viesse ao menos falar com ele, era tudo o que lhe importava. Quando tentou se levantar, sentiu uma forte pontada no peito. Não entendia como podia sentir dor, estando morto. Mas a dor não era somente uma impressão. Ele se deitou novamente, esperando que a dor cedesse. Agora sentia seu corpo, seu rosto estava molhado, talvez de suor. Ele sentia suas mãos e pés gelados. Começou a sentir frio, novamente. Talvez esse fosse seu inferno, sentir seguidamente as mesmas coisas, como se estivesse preso em um vórtice em torno de uma árvore. Sempre voltando ao mesmo ponto de onde partira, mas nunca alcançando a árvore. Quase como se fosse levado por sua metáfora, Mulder viu a árvore, quando abriu os olhos. Era a única coisa que via. Uma grande cerejeira, com milhares e milhares de cerejas que se acumulavam na copa. Não havia sequer uma folha na árvore, o que era muito estranho. A árvore se movia, vinha em sua direção. Mulder não sabia se fugia dela ou se ia ao seu encontro. Talvez fosse melhor tocá-la, apanhar alguma cereja, verificar se a tal árvore não era uma serpente que havia vindo provocá-lo. Ele esticou a mão em direção à copa da árvore, e decidiu apanhar um bocado das cerejas. Então a árvore gritou, indignada. Tinha a voz da Scully, tinha seu cheiro. Bem, agora que ele pensava, era muito provável que ela fosse a Scully. "Desculpe, Scully. Pensei que eu tivesse morrido e que você era uma árvore." "Mulder, você nem chegou perto de morrer, foi um tiro de raspão, e eu não me pareço com uma árvore, por favor." "Tem certeza que foi só um tiro de raspão? Eu não entrei em choque? Eu senti tanto frio." "Bem, está fazendo um frio terrível lá fora." "Então eu vou ter que suspender a venda dos ingressos?" "Que ingressos Mulder? Sabe, você parece chateado em ter sobrevivido." "Não, não é isso. Eu pensei que tinha morrido, fiquei curioso em saber como era do outro lado." "O outro lado não é tão ruim Mulder, mas ainda existe muita coisa boa por aqui. Que tal você esperar uns trinta anos prá saber o que há do outro lado? Por favor?" Sem dar tempo de Mulder responder, Scully se despediu dele, dizendo que ele precisava descansar. Mulder fechou os olhos e aguardou o sono chegar. Quando começou a sentir um leve torpor por todo o corpo. Se deixou levar por essa sensação. Foi quando ele viu um túnel, e no fim dele estava Scully. Ela lhe sorria, calmamente. Mulder, de repente se lembrou de algo, se lembrou não de sua infância, não de sua juventude. Se lembrou dos momentos que antecederam sua quase morte. Recordou-se do instante em que sua parceira havia sido atingida, uma bala no pescoço, ele tinha certeza disso. Ela tinha que estar muito ferida, não era possível que ela tivesse estado naquele quarto de hospital. Mas ele tinha visto Scully lá, assim como agora a via do outro lado do túnel. Ela lhe deu adeus e sumiu na luz. Antes que ele pudesse seguí-la, a luz desapareceu, assim como o túnel. Quando ele acordou dessa ilusão as lágrimas molhavam seu rosto. Nem ao menos percebera que estivera chorando. Nem ao menos notara que tivera a chance de se despedir dela e havia desperdiçado aquele momento. Mas, ao mesmo tempo, sentia que ela estava bem, que ela havia se encontrado com ele somente para lhe dizer isso. E talvez para lhe dizer que eles se encontrariam, dali ha muito tempo. Mulder deitou a cabeça no travesseiro e deixou que as lágrimas descessem livremente. Do lado de fora do hospital havia somente o ruído de folhas ao vento, dentro do quarto havia somente o som de seus soluços. Fim