Título: Dias de Chuva Autora: Claudia Modell Sinopse: Pode um simples dia de chuva deprimir ainda mais o Mulder? E-mail: claudia@subsolo.org Categoria: Drama Homepage: http://subsolo.org Disclaimer: Os personagens dessa história foram criados por Chris Carter, 1013 e Fox Company. Dias de chuva Já eram 5:30 da tarde, e Mulder continuava longe de onde deveria estar. O edifício do FBI. A reunião havia sido marcada há dois dias e provavelmente Scully estava querendo matá-lo a essa hora. Ele entendia perfeitamente a urgência dela, afinal Kersh não era exatamente o tipo de chefe que aceitava desculpas esfarrapadas ou desmarcava encontros na última hora. Mulder não tinha qualquer desculpa, nem mesmo esfarrapada. O máximo que tinha em seu favor era o fato de que a locadora de automóveis demorou séculos para dar baixa no registro do carro que eles haviam usado durante a semana e que apresentava defeito. Mas isso era uma desculpa inaceitável, ele estava ciente disso. Se, ao menos, ele tivesse consigo um celular carregado. Não havia coisa mais inútil que um celular morto. Mulder se sentia como um homem das cavernas sem o seu celular. Ele decidiu telefonar de uma cabine pública. Avisar Scully era a melhor coisa a fazer, ela com certeza acalmaria Kersh e lhe daria mais tempo para chegar a reunião antes do fim do milênio. Mas encontrar um telefone público sem fila parecia uma missão impossível, ou assim ele pensava, até que viu uma cabine pública com uma senhora já usando o telefone e uma jovem esperando sua vez. Era melhor do que nada, pensou. Mulder se aproximou da moça e pensou em pedir para passar na frente dela, mas ela pareceu ler os pensamentos dele. -Esqueça, eu sai de casa e deixei o fogão aceso. Com a sorte que eu tenho provavelmente os bombeiros vão atender o telefone. -Devia chamar os bombeiros em primeiro lugar. Mulder não sabia nem ao menos porque estava conversando com ela. -Bom, é a segunda vez essa semana que eu faço isso, e acho que o corpo de bombeiros não ia ficar muito contente em ir ao mesmo local duas vezes em uma semana. -E pensar que eu achava que ia viver sem conhecer uma incendiária. Ele disse isso mas no mesmo instante se arrependeu. Entretanto a jovem não pareceu irritada com o comentário, ao contrario, até mesmo riu. -Então muito prazer, meu nome é Karen Davidson. -Fox Mulder, mas meus amigos me chamam somente de Mulder. Agora me diga, já que somos amigos, da pra você me deixar usar o telefone? Juro que vai ser rápido. Karen não pôde resistir ao pedido dele, e, afinal, se seu apartamento estivesse pegando fogo ela iria para um abrigo público. As coisas já estavam tão ruins para ela que nada podia ficar pior. -Ok, mas você prometeu ser rápido. -Vou ser. A mulher que estava na cabine saiu como se tivesse entendido a deixa, o que deixou Mulder mais aliviado. Ele discou o número do celular de sua parceira. -Scully? Sou eu. -Mulder, pode pelo amor de Deus me dizer onde você está? Me diz que você está na garagem, por favor. -Não, eu estou bem longe do FBI, só queria te avisar que não chego nem mesmo em meia hora, sinto muito. -Mas porque? Onde você está? -Do outro lado da cidade, tive que entregar o carro e pegar um novo, por causa do maldito barulho que ele vinha fazendo. -Mulder, Kersh está fazendo bem mais barulho do que o carro. Ele está furioso, na verdade. -Scully, tenho certeza que você vai conseguir acalmá-lo. -Não, eu já desisti disso, na verdade eu já vou embora, você se entende com ele amanhã Mulder. -Mas... Ela já tinha desligado. Mulder sabia que ela ficaria zangada mas não pensou que ela ia deixá-lo enfrentar seu chefe sozinho. Karen estava esperando que ele terminasse de telefonar e quando percebeu que ele havia desligado correu para pegar o telefone. -Hey, calma, algum incêndio? Ele fez a brincadeira mas sua mente estava em outro lugar. Mulder queria ir para a casa de sua parceira e convencê-la a apoiá-lo junto a Kersh. Ela tinha uma imagem bem melhor que a dele, principalmente agora. Mulder estava absorto em seus pensamentos quando percebeu que Karen estava chorando. Ela desligou o telefone e continuou andando. -Karen, o que houve? -Falei com o sindico do prédio, tudo perdido. -Pegou fogo? -Não, fui despejada. Olhe, desculpe, não quero envolver você nos meus problemas ok? Mulder já se sentia envolvido, afinal ver aquela jovem no meio da rua, de noite e sozinha não era exatamente uma visão agradável. E ainda por cima estava começando a chover. -Você tem pra onde ir? -Tenho, eu possuo alguns prédios na parte nobre da cidade, mas gosto de ser despejada. Karen se arrependeu de ter dito essas palavras, mas no momento ela se sentia tão injustiçada que não pensou muito nos sentimentos dos outros. -Karen, eu sei como se sente, só quero ajudar, me deixe levar você para algum lugar, um hotel, eu pago, depois você me paga. -Mulder não acho que você saiba como eu me sinto. Na verdade você não tem idéia do que eu estou passando. Eu não posso aceitar sua oferta. Eu não tenho dinheiro, emprego, casa, carro ou qualquer outra coisa. Essa sou eu, sem dinheiro no bolso e com a roupa do corpo. Ela falava isso aparentemente sem qualquer emoção, mas Mulder não estava seguro se o que ele via nos olhos dela eram gotas de chuva ou lagrimas. -Karen, vamos dizer que eu tenho agido como um idiota ultimamente, e que agora gostaria de expiar meus pecados e escolhi você como bode expiatório. O que acha? Ela começou a rir. -Acho que e a primeira vez que alguém me chama de bode, mas vou tomar como um comentário positivo. -Desculpe não foi isso que eu quis dizer. -Eu sei, não se desculpe. Vou aceitar sua oferta. Acho que não tenho mais nada a perder mesmo. -Ok, entre no carro. Mulder dirigiu em silêncio, Karen também não parecia muito disposta a conversar. Ele estava preocupado com ela. Em sua mente vinha a visão de tantas pessoas que vivem na rua, pessoas como Karen, que um dia tem um emprego e uma casa para morar e que de repente se vêm obrigadas a morar no meio da rua, dividindo a calcada com bêbados e drogados. Mulder, finalmente, quebrou o silêncio. -Karen, eu tenho que passar na casa da minha parceira, você se importa? -Não, claro que não. Sua parceira? -Sim, eu não te disse, eu trabalho para o FBI. -Ótimo, estou nas mãos da justiça então. Do lado de fora do carro a chuva caía com mais intensidade que antes. Mulder mal conseguia enxergar a estrada, e já nem estava seguro sobre o caminho que tinha decidido pegar. -Karen, você conhece essa área? -Na verdade não. Estamos perdidos? -Humm, odeio dizer, mas acho que sim. Mas é a chuva. Quando diminuir eu vou descobrir que estou no quintal da minha casa. Karen ignorou o comentário, ela estava preocupada, a chuva parecia ter aumentado mais ainda de intensidade e agora estava impossível de se enxergar sequer os semáforos. -Talvez seja melhor encostar o carro. -Ok, eu vou tentar, mas e melhor não ficar nessa rua, vou tentar pegar uma rua secundaria, não gostaria de ter um caminhão nas nossas costas. Ele dirigiu por mais alguns metros quando percebeu uma saída. Não tinha certeza se era uma saída para uma rua ou para a auto-estrada. A essa altura ele não tinha certeza nem mesmo se estava em Washington em algum local da Florida. -Mulder nunca havia visto tanta chuva assim. Ele parou o carro, tomando o cuidado de deixar o pisca alerta ligado. -Karen, não quer conversar? -Sobre o que? Minha vida agitadíssima? -É um bom começo. -Ok, eu nasci na Califórnia, meus pais morreram em um acidente há dois anos. Sendo filha única de pais filhos únicos, eu me vi completamente sozinha no mundo, com pouco dinheiro e sem formação acadêmica. Me mudei pra Washington e consegui um emprego de secretaria. Mas, como obviamente eu não sou nenhuma beldade da TV, não consegui manter o emprego por muito tempo. Então não pude mais pagar meu aluguel, minhas contas começaram a vencer e aqui estou eu. -Bem, acho que você só esta passando por um momento difícil. -Mulder, você não tem idéia da rapidez com que um momento financeiro difícil se torna a história da sua vida. Eu perdi meu credito, não tenho onde morar, então vai ser difícil conseguir um emprego. Vou para algum abrigo público e durante o dia vou procurar emprego mas como não tenho local fixo pra morar eles não vão me empregar. Então chega o dia que nem o abrigo vai me aceitar mais. -Você está sendo negativa. -A vida é negativa, eu estou sendo realista. -Vou te ajudar ok? -Você é um anjo, mas acho que você não vai conseguir consertar a bagunça que está a minha vida. -Bem, por enquanto acho que ninguém vai resolver nada, vamos ter que esperar um pouco pra chuva passar. -Mulder, posso te fazer uma pergunta? -Todo ouvidos. -A chuva deixa você triste? -Não sei, acho que não. Tenho boas lembranças de dias de chuva. E más lembranças também. Mulder se lembrou de uma discussão com Scully debaixo de um temporal, a primeira entre muitas das discussões que ele aprendeu a apreciar. -Sei, mas em geral ela não te traz idéia de tristeza? -Acho que sim, mas quando acontece e só seguir por ai e não ficar muito triste. Karen lembrou-se tantos dias chuvosos, quando ela era criança, em que ela não podia ir brincar lá fora, mas que eram preciosos porque traziam um momento de intimidade com sua mãe. Ela sentia falta da mãe, e muito. -É, acho que dias de chuva deixam todos tristes. -Isso, e segundas-feiras! -Não, segunda-feira deixa as pessoas zangadas. Mulder não pôde deixar de rir do comentário. Normalmente, ele nem ao menos sabia que dia da semana era, já que seu trabalho não era de segunda a sexta, mas tinha certeza que os dias ruins calhavam de ser segunda feira. Era uma lei universal. -Karen, minha vez de fazer uma pergunta. Se você pudesse fazer algo para mudar sua vida agora o que você faria? -Humm, eu não sei, acho que pegaria essa estrada com chuva ou sem chuva e iria sem rumo até a crise passar. -Ou até a chuva passar. -Como quiser chamá-la. Mulder ligou o carro. -O que você está fazendo, Mulder? A chuva não diminuiu. -Acho que você não gostaria de ficar no meio da chuva esperando ela passar não? Vamos fazer algo em relação a isso. Vamos procurar um lugar que não esteja chovendo. Karen não entendia se ele estava falando em metáforas ou se se referia a chuva realmente. Mas a idéia, como quer que fosse, lhe parecia boa. Mulder não sabia se estava fazendo a coisa certa, não tinha certeza nem ao menos de onde estava mas ficar parado ali no meio do temporal o estava deixando deprimido. Ele resolveu seguir o próprio conselho, ia seguir em frente, procurando um lugar onde não chovesse, onde ele não tivesse que se preocupar com Kersh, com o Consorcio. Ou até mesmo com sua parceira, sua irmã, sua própria culpa. A culpa ainda ia segui-lo por alguns quilômetros. Ele tinha certeza disso. Abandonar tudo nunca foi sua idéia mas agora parecia que ele tinha planejado isso há anos, e tudo parecia fazer muito sentido. Mulder dirigia e discutia consigo mesmo. Ele se sentia estranho, como se já soubesse tudo, como se já tivesse sentido tudo, como se fosse muito, muito velho. E a idéia de desistir de tudo estava cada vez mais arraigada dentro dele. Ele não tinha idéia de que momento ele passou a ter essa idéia. Teria sido Karen? Teria sido a falta de rumo dela e ao mesmo tempo sua simplicidade? Sim, porque a vida era tão simples. Você trabalha, você recebe por seu trabalho, você vai pra casa e tem uma vida. Ele não tinha nada disso. Nem Karen. O fato dele ter um emprego e um lugar para morar não o fazia diferente dela. A vida dele era uma farsa, ele corria atras de uma verdade que não queria ser encontrada, ele se cercava de inimigos e amigos, mas tinha que descobrir quem era quem. Ele ia para casa no fim do dia, mas era como se não tivesse saído do trabalho. Sua casa era uma extensão do seu trabalho. Nesse momento, conversando consigo mesmo e se sentindo tão velho, ele só queria desistir disso tudo, e seguir sem rumo, sem preocupações, até a chuva passar e ele deixar de se sentir tão mal. Karen estava tentando imaginar para onde os dois estavam indo. Mulder parecia tão serio, tão triste. Ela se sentia culpada. Toda aquela conversa sobre a chuva provavelmente teria desencadeado sentimentos tristes nele. Mas ela se sentia tão deprimida que não podia nem ao menos ajuda- lo. Mulder sabia que tudo iria passar, que aquilo era somente uma tristeza momentânea, nada estava realmente errado. Ou estava? Ele não tinha tanta certeza, a noite estava escura e a chuva parecia ter diminuído. Mas ele continuou dirigindo, pelo bem de Karen, pelo menos. Não havia nada de errado com ele. E normal as vezes não se sentir pertencente a nada. Ter a sensação de caminhar em círculos, e de agir como um palhaço solitário, deixado no meio do palco, fazendo as mesmas coisas, sem ninguém pra aplaudir. Deus, ele estava realmente deprimido. Ele sabia que não estava sozinho, ele tinha Scully, tinha seu trabalho. Mas por quanto tempo? Seu trabalho estava nas mãos de Kersh, que não estava disposto a aceitar seu modo de ser. E Scully parecia muito irritada com ele ao telefone. A imagem dele sendo demitido e com o passar do tempo Scully deixando de estar a seu lado, pouco a pouco, o estava deixando mais deprimido. Mas era a verdade, quanto tempo ela estaria ao lado dele se ele não estivesse trabalhando com ela? Por algum tempo eles se encontrariam, e teriam um pouco sobre o que conversar. Mas ela começaria a viajar, novo parceiro, casos diferentes, coisas que ela não podia comentar com ele. E então ele seria colocado de lado, como um palhaço velho que sabe truques velhos e que não interessa a mais ninguém. -Eu sei o que você está pensando, Mulder. -Telepatia? Karen riu. -Não, intuição feminina. -Ok, teste, o que eu estava pensando? -Que talvez seja melhor pra você fugir da chuva. -E o que nós estamos fazendo não? -Mulder, você sabe do que eu estou falando. Você quer fugir dos seus problemas tanto quanto eu. -Sim, acho que sim. Mas isso passa. Mulder continuou dirigindo e pensando em sua parceira, sua amiga. Engraçado como seus pensamentos sempre se voltavam para ela. Scully era mais do que a parceira dele, mais do que amiga, ela o completava. Ele sabia que devia correr de encontro a ela, e não dela. Mas no momento ele precisava ir para o lado oposto. Karen estava olhando para o resto de chuva que caia lá fora, tão fina que nem era mais necessário o limpador de pára-brisas. Ela abriu a janela e o vento frio da noite invadiu o carro. -Se importa se a janela ficar aberta um pouco? Mulder não respondeu. Ele estava atento a estrada. Ou absorto em seus próprios pensamentos. Karen estava preocupada. -Mulder, não quer parar? -Desculpa, o que você disse? -Se você não quer parar pra descansar. A chuva diminuiu. -Não sei, você quer? -Talvez fosse melhor a gente voltar. -Karen, você tem certeza? -Tenho, acho que agora da pra enxergar melhor a estrada. -O que mudou? Karen não sabia o que havia mudado. Qual teria sido momento ela deixou de se sentir triste. Talvez no momento que percebeu que um desconhecido havia mudado o próprio rumo somente para faze-la se sentir melhor. -Eu não sei, talvez a chuva tenha diminuído o suficiente pra gente poder enxergar melhor a estrada. -Ainda está chovendo. -Eu sei, mas não e nada que não dê prá gente resolver. Mulder não tinha tanta certeza se o que ele vinha sentindo já havia passado. Karen percebeu a hesitação dele. -Mulder, isso vai e volta, não tem como fugir de momentos como esse. Nem ao menos e preciso se falar muito sobre isso. Todos entendem o que é isso. -É, acho que você tem razão, malditas segundas-feiras e dias de chuva. Mulder fez o retorno e voltou para a cidade. Karen não tinha idéia do que faria no dia seguinte, de como iria conduzir sua vida, mas ela sabia que não havia como fugir da chuva. A única coisa a fazer e esperar passar. Mulder também não tinha idéia do que aconteceria no dia seguinte, se Kersh iria demiti-lo afinal, se Scully iria ajuda-lo. O dia seguinte era uma pagina em branco. Ainda bem que não era segunda feira. Fim